O sinal toca, hora de mudar de aula.
Saímos do “antigo primário” e entramos no ginásio.
Agora temos educação física. Para muitos meninos, “momento oficial para jogar bola”. Para outros, como eu, da comunidade LGBTQIA+, hora de encarar que somos diferentes.
Meninos para um lado, meninas para o outro.
E quem não se encaixa faz o que?
No meu caso, futebol sempre foi sinônimo de não inclusão. Eu sabia que no momento que eu chutasse a bola, todos saberiam que eu era gay, mesmo antes de eu mesmo ter certeza disso.
E a cada chute na trave, um olhar ia surgir, um apelido iria ser criado e no final o que era para ser “diversão”, era diversão – para os outros.
Impressionante como as escolas, em sua maioria, não são preparadas para receber o diverso.
Somos ensinados, desde cedo, a nos classificarmos, a estabelecermos padrões para a nossa vida e nossos comportamentos. E o regime é cruel para quem não se adapta.
Você já ouviu falar em currículo oculto?
Quem explica o conceito é o advogado Thiago Coacci. Thiago também é membro da TransVest, um coletivo de Belo Horizonte que luta para a inclusão de pessoas trans através de uma das principais armas disponíveis – a educação.
“É um currículo”, acrescenta Thiago. “Mesmo que não esteja lá explícita a disciplina, não sai o seu certificado, no seu diploma, no seu histórico escolar que você fez isso: ‘vai ser feliz, você fez heterossexualidade’. Isso é ideologia de gênero”.
E com um canudo invisível na mão e o certificado carimbado na cabeça, muitas pessoas validam a LGBTfobia na sociedade.
Isso, inclusive, é um traço nosso. De acordo com um relatório de 2021 da UNESCO, a América Latina é um ambiente hostil para alunos LGBT, que têm suas vivências atravessadas pelo preconceito durante os anos escolares, tão fundamentais para a formação cidadã e intelectual.
Me lembro como era difícil deixar claro a minha vontade de participar da aula de artes cênicas ao invés de esporte, no Ensino Médio.
E aqui deixo claro, que isso acontece independentemente da orientação sexual – muitos heteros fazem teatro, mas o preconceito é tão enraizado que, nessa idade, para não ser excluído, eu precisava estar onde a maioria dos meninos queria estar. Eu precisava seguir o que a escola e a vida me ensinavam: um padrão.
E isso aos poucos isso gera depressão, desinteresse, notas baixas, bullying e em graus mais altos a expulsão.
E para se proteger, muitos de nós, da comunidade LGBTQIA+, vamos criando estratégias para enfrentar o ambiente escolar. E uma delas é permanecer no armário.
75% de nós não declaram sua orientação sexual ou identidade de gênero no Ensino Médio, de acordo com um levantamento da ONG Todxs. E cerca de 80% das pessoas trans abandonam a escola, ou melhor “são expulsos” de acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
Quem viveu isso na pele pode contar para a gente.
Eu apresento Nikole do Espírito Santo.
Expulsa de casa aos quatorze pelos pais depois de se assumir, ela hoje com cinquenta e dois está prestes a se formar na faculdade.
“Eu tive que sair do bairro onde morava e eu fiquei na rua, sem ter para onde ir“, diz Nikole. “Apesar da minha família ser enorme, eu fui à casa de todos os parentes e todos disseram as mesmas palavras que meus pais já tinham dito: que eles não iam aceitar uma doença dentro de casa.”
Morando na rua, ou melhor, dentro de um cemitério por dois anos, Nikole encontrou o primeiro curso de capacitação. Primeiro um curso de cabeleireira, depois cozinheira: mas em todos os ambientes ainda sofria preconceito.
De acordo com a ANTRA, apenas 4% da população trans feminina no Brasil encontra empregos formais. Por outro lado, 90% das mulheres trans e travestis no Brasil utilizam a prostituição como fonte de renda. Como pensar em retomar os estudos quando há uma sociedade inteira te jogando para a marginalidade?
Não aceita em casa, não aceita na escola, não aceita no trabalho.
Que bom que a Nikole não aceitou essa situação de não ser aceita.
O projeto ao qual Nikole se refere é o Transcidadania, da prefeitura de São Paulo e voltado para a elevação da escolaridade e reinserção da população trans na sociedade.
Hoje, 510 pessoas são assistidas em cinco centros espalhados pelo município de São Paulo.
“O programa foca na elevação da escolaridade. A gente reconhece que muitas pessoas trans têm dificuldade de entrar e se manter na escola dentro do Ensino Fundamental e Médio por conta de preconceito, por conta de não pertencer à família, a família a expulsar, ela ficar à mercê de uma sociedade muito cruel, quando ela não está acolhida na família”, nos conta a coordenadora de políticas públicas LGBT da cidade de São Paulo, Fê Maidel.
Acolhimento. É justamente esse o objetivo do projeto. Dar acesso e oportunidade a uma escola que respeite essas pessoas, para que elas possam apreender uma profissão e assim conseguir se sustentar. Para que possam se sentir cidadãs, parte ativa da sociedade, dentro de suas subjetividades e longe de quaisquer padrões.
E é bom lembrar que nós da comunidade LGBTQIA+ não somos iguais à média. E isso está longe de ser um problema.
Nikole, com uma lacuna de mais de trinta anos para conquistar o que lhe é de direito: o diploma, mostrou que está bem acima.
Porque ela, mesmo com todos dizendo que não, viu na educação o caminho para a cidadania.
Obrigado Nikole, por resistir.
FONTE: CNN Brasil